VULMAR COELHO
J.UM
Fomos surpreendidos pela triste notícia do falecimento de Vulmar Pinto Coelho, em Juiz de Fora. Além dos estreitos laços de amizade que o uniam à nossa família, acresce que o Vulmar representava um valor intelectual antigo da nossa terra e da nossa zona.
Conheci-o sempre magro, traços finos, elegante, com o sabor da intelectualidade na prosa divertida e curiosa. Era um boêmio suave que se casou cedo e vivia maravilhosamente bem com a mulher. Casal sem filhos. Começou cedo a lidar com a imprensa, mas como sempre morou no interior, não teve oportunidades de desenvolver seu belo talento.
Era coração boníssimo, farmacêutico formado por Ouro Preto e que pouco exerceu a profissão. Nunca teve grandes preocupações com o futuro e era de uma ingenuidade financeira confiada e amorável. Fiel aos amigos, fazia-os em todas as classes sociais e tinha o raro condão de conservá-los sempre.
Seu pendor maior era para as letras e o devaneio. Chegado à casa de um amigo, se lhe era servido um bom vinho e uma cachacinha, perdia a noção do tempo e era capaz de romper por uma noite a dentro até alta madrugada, descendo as escadas com passos incertos e trombicantes. Não havia resistir-lhe, pois era de uma cordialidade e amabilidade pouco comum.
Como intelectual nato, começou desde cedo, talvez desde 1910, a escrever para os jornais, onde havia algum jornal. Quer me parecer que foi no Correio de Guanhães que escreveu umas crônicas magníficas sobre o valentão mais famigerado desta terra, que foi Vicentinho de Araújo. Era o Vicentinho baixote, pálido, calado e que não bolia com ninguém. Andava num cavalo pangaré, magro e ossudo, mal arreado, amarrado até com imbira de lagartixa. Dizem que tinha parte com o demônio e que seu freio metido na boca de qualquer animal punha este esperto e saltador como azougue. Certa vez, em Ferros, fez uma desordem. A polícia deu-lhe de cima. Ele reagiu à taca, isto é, trabuco, espalhou soldados e mandou o cavalo numa altura de cinco metros, deixando a parede do sobrado marcada com quatro sinais de ferradura. Isto eu li num artigo assinado pelo Vulmar. De outra feita, num domingo, entrou em São Domingos, hoje Dom Joaquim, tocou seu cavalo para junto de uma venda para a qual se subia por três degraus de toras de madeira. Apeou, subiu os degraus seguro no cabresto e foi dizendo ao vendeiro, com quem tinha costume: “Hi, daí, que você vai por meu martelo acostumado de cachaça”. O vendeiro obedeceu, encheu o copinho de cristal de cachaça e entregou-lho. Vicentinho, quando ia levar o copo à boca, sentiu um puxão no cabresto. Virou-se e deu com um crioulo grande, da raça dos Ponte Alta, que foi lhe dizendo: “larga este cabresto que eu quero dar um repasso neste porqueira de cavalo”. Vicentinho que era educado, mas que tinha uma raiva fulminante, respondeu-lhe: “Hi daí, macaco, que negro não põe o cu no meu arreio”. O negro continuou a dar safanão. Vicentinho, esperto feito gato, foi saltando em cima do cavalo e baixando uma trabucada atrás da orelha do crioulo que caiu por terra com uma tacada só. Nisto ferveram no Vicentinho dez negros Ponte Alta desgraçados no porrete, para amassá-lo de vez. Mas o cavalinho dele virou um corrupio, avançava nos crioulos, derrubava-os, mordia-os e lhes mandava os pés, enquanto Vicentinho, de cima dele passava cada trabucada de mil réis e cada uma delas, quando pegava direito, mandava um negro prá poeira.
A rua virou um redemoinho. Os negros, à medida que se levantavam, voavam para o lado do rio, num beco. Mas no fim do beco havia uma tranqueira alta e cada negro que vazava a tranqueira por cima levava uma rachada danada de despedida. Vicentinho, acabada a refrega, dirigiu-se à venda. Apeou-se, subiu os degraus, apanhou o cristal com toda a calma, bebeu, pagou ao dono da venda, agradeceu e foi tocando seus cargueirinhos com seus trastes velhos de mercadorias. Esta história conheço-a desde menino, mas vi-a escrita, pela primeira vez, pela pena pitoresca do Vulmar.
Nosso amigo amava o folclore. De vez em quando freqüentava os batuques para ouvir os cantadores e tocadores de viola. Se tivesse vivido em centros grandes, teria sido um formidável contista e folclorista, além de mimoso poeta. Vulmar, ao que parece, nasceu em Senhora do Porto ou talvez Ferros. Sobre Ferros publicou um livro – “Uma cidade perdida no sertão”. Não sei quantos livros de poesia deixou. Assinalo “Ânforas” e “Penumbra” se me não falha a memória. Ocupou vários cargos. Aqui mesmo em Virginópolis exerceu a farmácia, foi juiz municipal e substituto do prefeito. Em Juiz de Fora ocupou também alto cargo. Ultimamente colaborou no “Estado de Minas”.
Vulmar foi muito menos do que poderia ter sido. Cabe-lhe, porém, com toda a propriedade, o título de contista, de intelectual perdulário e de poeta delicado. É um nome que se deve guardar nos fatos da história de nossa zona tão desprezada e pobre, mas donde têm brotado talentos e merecimentos reais.
Escrevendo estas linhas sinto-me em falta com Vulmar, pois deveriam escrever sobre ele aqueles que com ele mais conviveram e melhor sabiam de suas realizações.
Meu avô nasceu em 25 de abril de 1888 e, quando eu era criança, ele me contava histórias de Vicentinho de Araújo. Hoje, a única coisa que sei é que existe uma terra em Gonzaga toda tomada de areia. E dizem que Vicentinho de Araújo fez fortuna nela com abacaxi. Tem uma música do Cantador Galves chamada "Saga de Vicentinho de Araújo" cuja letra é muito quedada a lendas. Como seria bom resgatar a história deste personagem.
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