quarta-feira, 23 de março de 2011

Do São Bento ao Caraça: Carlindo Mayrink - 07/07/1968 - "A Peneira" n° 33 - J.UM

DO SÃO BENTO AO CARAÇA:  CARLINDO MAYRINK


J.UM




Alto e magro, pescoço comprido, gogó saliente e agressivo, rosto escaiverado, cara fechada. Quintoanista. Para o calouro, os 5º e 6º anistas eram seres superiores, da estratosfera intelectual.

Do 4º ano para cima, eram escolhidos os leitores para o jantar ao meio dia. Naquela meia hora de refeição, se começava por um bom trecho da Bíblia, em latim. Após, vinha a leitura de um livro proveitoso, em português. Por fim, o Martirológio, em latim.

refeitório no Caraça
O Clarindo Mayrink foi dos primeiros leitores que os novatinhos do Patrocínio de Guanhães viram subir ao púlpito do Refeitório. Começou a leitura da Bíblia. Voz grave, de trovoada profunda, timbrada de aço. Porque o Clarindo devia ter fundíssimas cavernas pulmonares de pura rocha granítica e suas cordas vocais deviam ser cordões de aço. Deviam ter pulmões fortes assim os animais pré-diluvianos. Tal devia ter sido a voz do gigante Polifemo descrito por Homero e Virgílio. Não é exagero, senhores. Tenho ouvido vozes graves e reboantes, mas, como a do Clarindo, morro sem ver outra.

A leitura era do liber Sapientiae. Era como se estivessem trovoando todas as cavernas do Averno. Era o diálogo dos salões do Chimborazo. Era Estentor, o sanhudo guerreiro grego, cujas zangas punham arrepios de frio nas espinhas dos troianos.

Vai saber latim na palhada!- pensava um novatinho. O superior parava a mastigação e punha-se a fitar, todo enlevado, o Mayrink a ler. Que missionário de vozeirão desaforado para acordar os ecos das montanhas de Minas e obrigar as almas rebeldes a irem, batendo curvas, para o céu!

jardim interno do Caraça
E fico hoje a cuidar: que baixo de panca internacional perdeu o Brasil, com o ingresso do Clarindo na magistratura! Pois o Clarindo era também cantor. Fazia-se ouvir distintamente por debaixo do emaranhado das vozes da polifonia. Baixo para valer, mais forte e mais subterrâneo que qualquer conjunto de baixos, numa audição polifônica de poderosos frades alemães.

Terminou o jantar, com o “Deo gratias”, respondido ao “tu autem, Domine, miserere nobis”, que encerrava o Martirológio. Saíram os estudantes. Ficou o Clarindo para comer. E deve ter comido bem, com o apetite provocado pela leitura e ainda aguçado pelo copão de vinho tinto, do excelente vinho virgem do Caraça. Finda a refeição e após ligeira visita ao Santíssimo, saiu o Clarindo, pela porta da Sacristia, para o pátio interno e subiu para o segundo andar, para guardar os livros. Estava-se ainda em férias. Os alunos aguardavam o toque de saída para o futebol na Varginha. Quando o Clarindo começou a subir a escada para deixar os livros na estante própria, o novatinho fascinado por aquela figura sobrehumana, tocou atrás dele escada acima. Mal tinha galgado a metade dos degraus, virou-se de sopetão o Clarindo, e, com a cara de um condenado evadido do inferno de Miguel Ângelo, regougou para ele: “Volta para trás, novato, senão eu te boto de joelhos no meio do recreio!” Que susto, minha Nossa Senhora! Que galopar desesperado levou o pobre do garoto que escreveu pela escada abaixo e, pelo recreio afora, com o coração batendo de arrasar! – Daí por diante, evitava passar perto do Clarindo, como de quem encarnasse todas as fúrias do fim do mundo. Com o correr do tempo, porém, foi o novato percebendo que o Clarindo era afinal um mortal, não era um regente, nem tinham os regentes autoridade para botar alguém de joelhos. E, ao depois, o piscado brejeiro do Clarindo, ao cruzar com o garoto já menos bisonho, queria dizer: “Fedelho trouxa, como eu te trotei aquele dia!”

Com aquele vozeirão e toda aquela estatura, o Clarindo era um pândego e o novato sempre lhe achou muita graça.


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