segunda-feira, 14 de março de 2011

Mar Dulce - 24/12/1969 - "A Peneira" Nº 91 - J.UM

MAR DULCE  

J.UM


Chegou ao Caraça, certa vez, um redentorista, músico de nomeada. O padre Rubim, organista experimentado, levou-o ao órgão e, maldosamente, começou a abrir-lhe as mais difíceis fugas de Bach. E ficou humilhado, ao verificar como aquele visitante executava as partituras mais difíceis como se as acabara de estudar. Foi de então nossa primeira notícia sobre Johann Sebastian Bach, que o severo Beethoven respeitava.

Pois bem, o programa do J. Silvestre ainda mais veio convencer-nos de como cabe aos tico-ticos atitude humilde frente a voos do talento. Não se sabe o que mais admirar: se o talento de Dona Dulcemar ou sua atitude cativante, naturalidade e modéstia.

O J. Silvestre merece-nos a maior simpatia e respeito, por sua personalidade radiante, enorme poder de comunicação, bondade e brilhante inteligência. Confessemos, entretanto, que é ele também vítima de um programa exigente, que chega a ser quase desumano, porque pede demais do  candidato.

Dona Dulcemar sabe tudo sobre Bach. 
Johan Sebastian Bach - 1685 - 1750

Cita, um por um, os números de um Opus e diz-lhe o tom. Identifica qualquer composição, somente ao ouvir um trecho. Reproduz todas as datas, importantes ou não, da vida do mestre, ou de acontecimentos que com ela se relacionam, pormenorizando até os itens de um cardápio da época. Bate o recorde supremo sobre si mesma, não se deixando enganar sobre certa melodia, ao ouvir-lhe a execução e dada como de Bach, e nomeia-lhe o autor. Mostra onde se inspirou Gounod na célebre Ave Maria, tocando a peça baquiana de que se aproveitou o grande compositor francês e mostrando o ponto exato em que se insere e começa a melodia, a belíssima ária lírico-religiosa, com sabor de ópera. Vai mais, acompanhando-se ao piano, canta a Ave-Maria, e como canta!
A dificuldade da olimpíada e o mérito excepcional da candidata está aos olhos de qualquer leigo. Quem aprecia as manifestações da arte fica suspenso, sofrendo, à proposição das perguntas, e subindo aos céus, com a resposta fácil, exata e superabundante. Memória geral e musical prodigiosa, inteligência cultivada e aguda, rapidez quase automática de u’a máquina de pensamento e de arte.

Quem não gostasse de Bach, sabia, ao menos, ser isso um pecado, que se não confessa numa roda de grandes do métier. Diante da modéstia e sinceridade e mérito colossal da candidata, quem não se sente pequeno? Vendo-a executar Bach, fechando os olhos em seguida, para ouvir a gravação com execução impecável, e compará-la à da candidata, em verdade nos abre os olhos ao começo de compreensão daquele filho dileto da divindade. Ele é grande, é excelso, e dizem os que podem, ser ele o maior mestre. E deve ser.

O programa do J. Silvestre é digno de Milão, Paris, Berlim,Viena. Lá seria afamado. Mais do que aqui. Moços, vocês têm a vida diante de si. Vejam como é lindo o saber. Vejam como é divina a modéstia.

Ouvindo a história de Bach, ouvindo-lhe as composições, nossa admiração vai além dele e atinge um país que é maior do que pensa. A gente, gemendo e chorando, tem que admirar a Alemanha. Não é ênfase. Temos que compreender aqueles diabos louros quando atravessam os séculos, ao embalo bélico de Deutschland über alles. Ficamos surpreendidos como o engenho e a arte decifram o emaranhado sublime de melodias que se enlaçam sobre o tronco principal como parasitas vaporosas, numa dança fantástica, numa repetição do tempo, multiplicando-o e variando-o nas suas possibilidades indefinidas.

Dizem os organistas que Bach é talvez o autor mais difícil. Mas Dona Dulcemar desce às suas melodias naquele ritmo fácil com que Orellana deslumbrado singrou as águas do Amazonas, contemplando as virgens guerreiras e as maravilhas imprevistas das paisagens do começo do mundo. Orellana batizou o grande rio com o nome de Mar Dulce. Epíteto bem merecido. Poderíamos sintetizar todo o nosso deslumbramento, ao desenrolar deste programa magnífico que, mais do que a J. Silvestre, honra ao Brasil, batizando Dona Dulcemar por Mar Dulce do engenho e da arte, paradigma da mulher brasileira, um grande exemplo do que pode a mente humana quando se afinca a um ideal e não se dá por satisfeita senão quando lhe atinge os píncaros.

Dona Dulcemar, ainda por cima, é uma sabedora do grande idioma. Aqueles cortes em hiato que são o encanto e o shibbleth da língua alemã vão nos embalando, numa delícia de sonho enquanto as frases melódicas se sucedem com a naturalidade de um rio sonoro. J.Silvestre, parabéns para você. Dona Dulcemar: é demais.


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