terça-feira, 29 de março de 2011

Do São Bento ao Caraça: Aurora - 04/02/1968 - "A Peneira" Nº 10 - J.UM

DO SÃO BENTO AO CARAÇA: AURORA


J.UM

Ferros antiga - MG

           Para um menino da roça, foi um acontecimento a entrada em Ferros. A primeira cidade que eu conheci. Meia légua antes de qualquer cidade, há os vestígios da aproximação de um aglomerado humano. Um quê de indefinível na paisagem, maior extensão de pastos cuidados, mais gente pelos caminhos. Estamos andando, andando, deixando para trás uma ou outra tropa. Dizem que no triângulo há um monumento ao zebu. No Nordeste falta uma estátua ao burro. Não como símbolo intelectual para a região, é claro, robusto, paciente, pertinaz e... inteligente. Inteligente, sim. Talvez assistisse razão ao carroceiro lusitano, que com sua musculatura de respeito ajudou o burro arquejante a arrancar do atoleiro a carroça pesada, e, então, tirando o chapéu e batendo na testa, apostrofou o valente asinino: ‘olha, colega, tu podes ter mais inteligência que eu, mas, muque, lá isso é que não!’ Bom povo português, que adoramos, perdoa-nos a irreverência, que é, muita vez, a paradoxal expressão de amor.

            Foi o burro que construiu o nordeste, transportando-lhe os produtos, e carreando, de Ouro Preto, Caeté, Diamantina, Sabará, Santa Bárbara, e até do Rio, os panos, as sedas, as rendas, o sal, o trigo, as ferragens, a louça e vasilha, até os santos para as igrejas e as lajes para as sepulturas.

            Penetramos gloriosamente em Ferros. Mateirinhos consertando o corpo, dando um jeito ao lebre e aprumando-se nos estribos, como se fôssemos alguma coisa. Catrau, catrau, catrau, três, três, três. Chispa a esguichar do pé-de-moleque ao raspar das ferraduras. Alguma moça desocupada acudindo displicentemente à janela. E nós, o centro do mundo. "Curuz"!

            Em um chafariz, a estátua de Aurora e de sua companheira, cujo nome não há santo que me faça lembrar: as duas primeiras índias que se batizaram no Brasil. Parece uma coisa à toa, mas, que impacto, gostoso no pensamento e no senso estético da criança que vê objetivado o que aprendera no livro.

ponte na cidade de Ferros - MG
            Ferros foi-se batendo para a retaguarda. Oh! coração que jamais te enches, já estás a ansiar por conhecer Itabira do Mato Dentro, a fábrica da pedreira, São Gonçalo do Rio Abaixo e Santa Bárbara. Quem de criança, após verificar que o céu não topa com a terra no cabeço daquela serra, não desejou um poder de visão que ultrapasse as lindes do horizonte e alcance o mundo formigante, cidades, regiões palpitantes de vida e de intercurso humano? No entanto, quantos conhecem menos do que a gente, quando afinal, têm o mesmo direito ao exercício de suas faculdades e a um campo maior para seus esforços. Labutam no campo ou na cozinha, a vida inteira, produzindo, sacrificando-se, mas numa estagnação e sujeição contrária à própria índole. No geral, entretanto, pensamos que eles que tiveram maiores oportunidades do que nós. Lembra aquele menino. A casa era um colégio de quatorze filhos. Os quartos, dormitórios. Tempo de frio. A mãe corria os dormitórios antes de se deitar, zelando pelo agasalho dos meninos. Cobre um aqui, achega o cobertor ao pescoço de outro, acolá. Passando junto do mais velho, pede este mais uma coberta.

            -Ah! meu filho, não há mais cobertas. Pense nos pobrezinhos que não têm nem as cobertas que nós temos.

            -Não, mamãe, eu fico pensando é nos filhos dos ricaços que, à uma hora destas, estão atochados debaixo de cada cobertor de meio palmo de grossura.

vista do Caraça a partir do cruzeiro

















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