domingo, 13 de março de 2011

O Chicão - 07/01/1972 - "A Peneira" Nº 136 - J.UM



O CHICÃO 

J.UM


O Chicão foi talvez o homem mais possante de Patrocínio de Guanhães. Chamavam-lhe, pelas costas, Chico Catafunda, não sei por quê. Morava na Fazenda do Povo, próxima à do São Bento. De estatura acima da mediana, olhos grandes e redondos, muito tórax. Fazia-me pensar que assim devia ser o “bicho homem”, animal mal assombrado que punha arrepios de medo na espinha dos meninos, nos contos ao pé do fogo. Era engraçado. As crianças, ao mesmo tempo que tinham medo, deliciavam-se com histórias de almas do outro mundo, de capeta, lobisomem, mula sem-cabeça, etc.

Digredindo, não fica esquecido o que se passou no Largo do Joãozinho Coelho, hoje Largo Dona Augusta Campos. O capeta achou de se distrair, altas horas da noite, à custa do medo de nosso arraial. Aparecia montado num bode preto, que soltava fogo pelos olhos, boca e nariz. O capeta rosetava o bode na espora, numa correria desabalada, para baixo e para cima. O bode berrava e bufava e o capeta falava – “a mulher do Bernardo tomou meu ditado, supimpa, xaráxaxá!” Pouco tempo depois, na campanha civilista, incorporava Rui Barbosa ao dicionário da língua o adjetivo supimpa.

Ora, muito bem. Estamos falando do Chicão. Certa vez, estavam uns homens lidando com uma tora de brauna pesada. Eram uns cinco ou, seis homens. Tratava-se de levá-la de rolo, a uma distância de quinhentos metros. Nisto aparece o Chicão. Com pouco, também chega Gabriel, seu irmão. Gabriel era pequeno, mas possante, barba de guardanapo, mas muito medroso. Estava de mal com o irmão, e já havia meses nem se saudavam. O Chicão vendo a peleja dos trabalhadores, disse: “se alguém pegar na ponta eu pego na cabeça”. Todo mundo olhou para o Gabriel. Este suspendeu a ponta da tora, colocou-a ao ombro. O Chicão ergueu a cabeça da brauna, levou-a ao ombro, e lá se foram os dois sem dizer uma palavra, carregando a tora, com naturalidade. Os graduados em idade ainda se lembram do João Garrafinha. Era ele casado com a Flora, índia de traços finos, falando sem sotaque, olhos da vivacidade de azougue, cabelos feito as penas da graúna. A Flora foi pega no laço, quando tinha sete anos. Ora, da força do João Garrafinha basta dizer que furava, com uma dedada, uma melancia sã, e o dedo entrava até a última junta. Já experimentaram fazer isso? Em Virginópolis, duvido muito que haja alguém que o faça.

Pois bem, certo domingo, numa venda da Rua do Buraco, começou o Chicão a arrotar valentia. O vendeiro, um medroso de marca maior, mandou avisar ao João da Cunha, que era subdelegado. João da Cunha levou como auxiliares o João Garrafinha e o Felipe Moreira, homem alto, espadaúdo e forte. Chegando à venda, deu o João da Cunha voz de prisão ao Chicão. Este obedeceu e se entregou dizendo: ‘É, João, como é você, eu estou entregue”. E lá se foram os quatro Rua do Buraco abaixo, rumo à cadeia. João Garrafinha travado num braço do Chicão e o Felipe Moreira no outro. O Chicão dormiu na cadeia. Dias depois, indo meu pai à venda do João Garrafinha, ali na Rua da Cangalha, receber um dinheiro de rapadura e cachaça, disse ao João: “Oh João, eu soube que você ajudou a prender o Chicão?” João Garrafinha deu uma risada seca e respondeu: “Chicão foi para a cadeia porque bem quis. Avalie você que toda hora ele se virava e falava: “Oh João da Cunha, eu me entreguei porque você é que é a autoridade, já viu?” Pois, quando ele se virava no seu modo normal, nós rodamos ao redor dele como duas bonecas de pano. O Chicão tem força de quatro homens fortes e, aqui no Patrocínio, não há homem para parar no braço dele”.

Mais tarde, traduzindo a história do Gigante Polifemo, na Eneida, o tipo que me vinha à lembrança era o do Chicão ou Chico Catafunda, cuja verdadeira assinatura era Francisco Alves Ferreira. O que vai aqui narrado são fatos reais. Mas a história do capeta e do bode preto, vendo-a pelo mesmo preço que a comprei quando menino. Mas o Chicão, tirante que tinha os olhos grandes e redondos, era uma edição atenuada do ciclope Polifemo que usava um pinheiro como bengala e trazia pendente do pescoço uma flauta: “trunca manum pinus regit, de collo fistula".







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