segunda-feira, 14 de março de 2011

Patrocinense Baiano - 06/09/1970 - "A Peneira" Nº 107 - J.UM



PATROCINENSE BAIANO 

J.UM

Sr. Adson da Costa Serra - Iôiô, Sr. Serafim Coelho e Dr. Raimundo Nonato Batista da Rocha


Dizem que ninguém faz falta neste mundo. É falso. São os tais “slogans” que o povo vem repetindo há séculos. Mas está errado. Há pessoas que não fazem falta. A não ser para aprimorarem a paciência dos bons. E a gente, não fosse a religião que o proíbe, diria: já foram tarde.

Mas os homens bons fazem falta. Há homens e mulheres que deixam um lugar impreenchível. O Yôiô foi um destes. Um querido de Deus e dos homens. Aquele mineiro e patrocinense nascido na Bahia foi um carismático. Ninguém ainda apareceu para falar mal do Yôiô. Do Yôiô que de ninguém falava mal. De seus lábios saiam piadas, ditos curtos e alegres. Porque o Yôiô falava pouco. Parecia que falava muito. Mas era um erro de observação. Falava pouco. O semblante risonho, porém, o todo acolhedor, o interesse vivo pelos problemas do próximo eram a conversa calada do Yôiô. Sempre alegre. Nunca encontrei o Yôiô de cara fechada. Era tão bom que a caridade diária que praticava não parecia caridade. Parecia obrigação. Toda manhã tinha o Yôiô uma estação de via-sacra, visitando os pobrezinhos que lhe não podiam dar um tostão. Aliás, o Yôiô nunca cobrou uma visita. Apenas vendia os remédios que não podia dar. Era pai dos pobres e dos ricos. Todos nós lhe devemos favores e dedicação que poucos homens são capazes de prestar. Para falar de mim mesmo, o Yôiô até rachar lenha fez quando nasceu o Lupciano. Eu tinha uma grande ilusão e uma grande esperança: era de ver o rosto amigo do Yôiô, aquele rosto entre risonho e safado me olhando na última dor. Mas o coitado do Yôiô me traiu. E foi a única afronta que me fez. Coitado, não dependeu dele.

Estávamos com a alma virada para Belo Horizonte, seguindo as melhoras do Yôiô. Ansiosos pelo seu retorno, na doce esperança de ouvi-lo e com ele brincar. E chamá-lo nos momentos de aperto, quando as coronárias ameaçassem um enfarto. Vã esperança, porque o homem põe e Deus dispõe. Estávamos de mãos postas para Deus, sinceramente, nas nossas orações sem valor, pedindo pelo amigo, rogando pela pessoa de casa que era o Yôiô, para que Deus lhe fizesse superar aquela crise que nos abalara. Caiu como um raio, sim, sem figura de retórica, caiu como um raio o passamento do Yôiô.

Estamos vendo se alguém faz falta. O elogio que posso dar ao Yôiô e que ele merece, é que perdemos o segundo Guedes de Virginópolis, e que está altíssimo na fileira dos benfeitores da terra. Mas o Yôiô está junto dele, na mesma altura, na mesma gratidão.

Conheci-o em 1936. Rapaz louro. Corado. Bonitão. Tornamo-nos amigos e o fomos cada vez mais. Amizade sincera. Simples. Sem derretimento. Por isso mesmo, genuína. Aquele rapaz jamais abandonou a terra. Saiu daqui e trabalhou no Rio de Janeiro. Mas o cordão umbilical estava ligado a Patrocínio, à nossa simplicidade, à nossa pobreza, à nossa cordialidade de mateiros. Tinha possibilidades de vencer em qualquer metrópole. Não o quis. Veio definitivamente para essa terra. Aqui casou, graças a Deus. Porque um homem como o Yôiô não poderia mesmo deixar semente em outra terra. Tinha que deixá-la em Virginópolis, para que os seus bons genes aqui proliferassem e deixassem um fruto permanente que, praza Deus, se multiplicará em proporção geométrica, para o nosso enriquecimento de bondade, de cultura e de caridade. Gosto muito da Bahia.
Admiro muito o baiano. Mas, antes de tudo sou mineiro. E patrocinense. O meu bairrismo bem entendido requer que a terra se enriqueça em seu patrimônio moral cada vez mais, longe de desdoirar os foros de bondade de seu passado.

Conta-se que um paraibano matou um irmão de Lampião que muito se lhe parecia. Anos depois, num seu pequeno sítio, pela manhã, cedinho foi acordado pelo estrupido das chilenas dos cangaceiros. Era Lampião que lhe cercava a casa e que o chamava para morrer. O sitiante acudiu prestes. Abriu a porta da casa e saiu para o terreiro. Lampião, bondoso e bandido, armado dos pés à cabeça, o estava fitando com olhos de morte.
- Bandido e covarde, você matou meu irmão. Prepare-se para morrer.
- Não, Capitão Virgolino. Eu não matei seu irmão de propósito. Foi por engano.
-Mentiroso e covarde. Está com medo de morrer.
-Capitão Virgolino: eu estou falando a verdade. Matei seu irmão por engano. Pois o que eu queria espatifar era a cabeça de vossa senhoria.
Lampião ficou indeciso e surpreso. Virou-se para ele e disse-lhe:
-Covarde. Vou dar-lhe uma chance. Vou contar até cem. Você vai andando. Devagar a cada número. Quando chegar a cem você corre porque lá vai bala atrás.
Lampião começou a contar: 1, 2, 3, 4, 5,...
O homem foi andando despreocupado. Devagarinho. No compasso da enunciação dos números. Chegou o número cem, e ele continuou a andar calmamente. Corisco, que era um dos jagunços, disse ao Capitão Virgolino que mandasse abrir fogo, se não o homem ia embora. Lampião tirou o chapéu, coçou a cabeça, pensou um pouco e disse: - qual! deixa ir. Ele é macho. Deixa ficar pra semente.

O Yoiô era um cristão que ficou de exemplo para nós. Porque o cristianismo é a caridade. Yoiô amava a Deus. Só o amor de Deus lhe poderia inspirar as grandes caridades de cada dia. Disse São Pedro e tinha gabarito para fazê-lo: caritas cooperit multitudinem”. É claro que o Yoiô devia ter pecados. Muito menos do que eu. Mas ele tinha um cobertor para sufocar o braseiro do pecado. Meu consolo é de que tenho certeza de que Deus amava e ama o Yoiô. Deus não podia fazer uma pérola tão preciosa, a não ser para guardá-la para si. O Yoiô merecia o cognome de justo. Justo, na teologia, é aquele que pratica a justiça. A justiça é o cumprimento dos deveres para com Deus e para com o próximo. A justiça quase identifica o homem com o Criador. Disse a Bíblia que “justus meus in fide vivit”. Yoiô viveu pela fé. Não a fé de muitas orações. Mas a fé da oração do trabalho e da prática da caridade. Concluo, tranquilamente, aplicando ao Yoiô as palavras do texto sagrado: “in memória aeterna erit justus, ab auditione mala non timebit”. Yoiô, ninguém falará mal de você. A não ser que seja um pobre de espírito. Ou um crápula.





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