quarta-feira, 16 de março de 2011

Possessos e Demônios - 29/12/1968 – "A Peneira" Nº 59 - J.UM

POSSESSOS E DEMÔNIOS


J.UM


Nesses discreleios assim encimados, não se compreenda somente a viagem corporal, de um para outro lugar, senão que, também, a narração de coisas e pessoas do São Bento e do Caraça. Do São Bento, roça de Virginópolis, onde minha fraca figura surgiu desacordada, para a vida; não o São Bento que existe entre Santa Bárbara e o Caraça. Vão me desculpando o “eu” que tanto abomino nos outros e tenho a virtude de adorar em mim. Vocês se admirarão do subtítulo. Falar em possessos e demônios neste tempo?

Minha gente, o demônio, já foi dito que é o substratum do Catolicismo. E há razão para isso. O capeta foi a primeira peça que se desengrenou na máquina da criação. Ele surgiu, ou se afirmou, para desordenar tudo. Pelo orgulho. Porque achou que era tão inteligente que podia discutir com o Criador e fazer valer seus pontos de vista pessoais. O demônio é mais astuto que o Comunismo. O século XX, dizia Rohrbacker, haveria de ver o triunfo da Igreja. Desejo-o muito, mas duvido um pouco. Por quê? Porque se está esquecendo a influência de Satanás, e ele está se aproveitando, num trabalho técnico de solapa, cujos resultados são: o afastamento do sobrenatural; Deus como algo de longínquo, mais ou menos desinteressado dos negócios humanos; um relevo vermelho nos dons da crítica; um desenvolvimento, vamos dizer harmonioso e acabado de todas as premissas outrora abstratas do racionalismo; um modernismo religioso que deixa na sombra o combatido por Pio X, que, à luz do nosso tempo, poderia chamar-se de café pequeno.

Reacionarismo nosso? Talvez, pois tudo é possível à falta de inteligência, ainda mais na atmosfera moral einsteiniana desta hora que voa.

Para baixo do São Bento, à beira do rio Corrente, onde é hoje o Florentino, estava acontecendo um batuque animadíssimo, onde, como de costume, dava a cachaça férias aos recalques. A cachaça foi lapidarmente definida como “o sacatrapo da verdade”, pelo Pe. Cesário, lendária figura de sacerdote, que paroquiou por estas bandas.

Ora, pois. Ia o batuque animadíssimo. Mas, enquanto os outros se divertiam, um velhinho de barba de guardanapo, sentado, de pernas abertas, junto a uma fogueira pra valer, alheio a tudo, rezava piedosamente o seu terço. Tudo corria muito bem ou muito mal, mas, em todo caso, muito enfático, quando uma cachorrinha branca, dessas extrovertidas e que trançava pelo meio dos dançadores, se desatinou, começou a uivar, como se o mundo fosse acabar, escreveu pelo meio dos batucantes, passou dentro da fogueira espalhando brasa por todas as quinze bandas. O velho, com uma brasa a lhe arder as barbas, e uma outra mais indiscreta a lhe fumegar o porão, onde entrara pela chance da braguilha semi-escancarada, levantou-se, dando pulos de mil réis, aos coices e gritos, perdendo o terço no vassoural circundante, enquanto a cachorrinha se afundava e morria no rio.

Pelo mesmo tempo, vivia no Paraguai, linda serra e roça de Virginópolis, uma velhinha de Deus. A velhinha levantava-se de madrugada, acendia a candeia, ajoelhava-se e entoava o Ofício de Nossa Senhora, que, como sabem, começa pela “Eia, lábios meus”, bela devoção de nossos pais que está, infelizmente, desaparecendo.

Quando, naquelas serranias somente se ouvia o cantochão dos grilos e os pios das corujas, que punham arrepios na espinha de algum caminhante tresnoitado, levantava-se a voz da velhinha cantando as glórias da Virgem Maria.

Ora, tempos depois, foi chamado para exorcizar um possesso impossível, que estava pondo maluca a família e a vizinhança, um padre velhinho, com fama de santo. O velhinho era desses com quem o demônio não brincava, porque, no frigir dos ovos, tinha que acabar dando o fora da cama quente.

Após os primeiros exorcismos e advertências, entrou o padre em diálogo com o demônio. Assim, pois, lhe perguntou quais as pessoas de por aqui de perto que não gostava. O possesso rangeu os dentes, estorceu-se todo e declarou: - não gosto de um velho barba de guacho. Há tempos, houve um batuque lá na beira do rio. A festa estava uma beleza e eu estava muito satisfeito. Mas, quando olhei, vi o tal velhinho quentando fogo, desfiando umas contas, gugunando umas bobagens. Fui ficando com raiva, fui ficando com raiva, e acabei entrando numa cachorra. Passei com ela na fogueira, espalhei brasa no velho enjoado e afoguei a cachorra no rio.
-De quem mais você não gosta?
Também tenho antipatia de uma velha coroca lá do Paraguai. Toda madrugada, dou um giro por lá, e toda vez que passo, está a diaba da velha cantando, com uma voz de dor de barriga: “Eia, rabos meus!” “Eia, rabos meus!”

Tratava-se de um possesso analfabeto.
Agora lhes pergunto: era capeta ou não era?

Seria um ignorante capaz de trocadilho tão ferino contra uma devoção de tantos louvores a Nossa Senhora?







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