DO SÃO BENTO AO CARAÇA: O ENTERRO
J.UM
Detalhes do interior da Igreja Nossa Senhora Mãe dos Homens, 1ª igreja neo-gótica do Brasil, no Caraça. |
Chamava-se Coriolano Pinto Ribeiro. Atendia por Delille, por causa de um irmão ex-caracense desse nome, hoje da velha guarda lazarística. Pequeno e barbado, corpo e força de orangotango, memória atorquezada. O que ali entrasse, não saía mais. E era reproduzido de jato, sem uma hesitação, como o nome de uma namorada. Memória sempre pronta, como um desses carros possantes que, ainda quando parados, nos lembram um grande felino agachado, arfante já para o salto prodigioso. Assim a memória do Delille. E ele estava-lhe sempre pondo carvão. Antes de estudar latim, sabia de cor trechos extensos de Ovídio, várias odes de Horácio, cantadas nas cortadas métricas. Somente de as ouvir relidas pelos irmãos, em férias, andando para baixo e para cima.
O meu Tio – assim chamávamos o professor de grego, Pe. Augusto Fonseca (como Deus há de ser bom, se o meu Tio era tão bom!) dava-nos a decorar várias odes de Anacreonte. A gente as sabia para a aula e para a prova oral, só. O Delille as retinha em definitivo.
vista posterior do Caraça |
Estou a lembrar-me de uma das muitas do Ayres Guimarães Alvim, em Belo Horizonte. O Ayres, muito prático da vida, como todo o ouropretano antigo, como todo solteirão profissional, tem um modo de pensar tipicamente seu e muito expressivo sobre as mais diversas situações da vida. Não se engana sobre as pessoas. Ninguém lhe joga cinzas nos olhos. Disseram-lhe certa vez: “Ô Ayres, faça um paralelo entre Artur Bernardes e Antônio Carlos”. E o Ayres:
“Ora meus amigos! Ambos, dois grandes homens. Patriotas e líderes políticos, mas cada um com seu temperamento e seu método. Suponhamos: O Bernardes é Presidente do Estado. Os estudantes, revoltados contra algum ato dele, improvisam-lhe um enterro. O enterro sai do Bar do Ponto, toca Afonso Pena acima e vaza na avenida João Pinheiro. Mas... antes de desembocar na Praça da Liberdade, lá vem a cavalaria que desembesta no meio da estudantada, e é espadeirada por todas as quinze bandas. É assim o Bernardes. O princípio da ordem, o respeito à autoridade tem que ser mantido.
Pois bem! Agora é o Antônio Carlos Presidente do Estado. Os estudantes saem com seu enterro. É uma algazarra. O velho Andrada é enxovalhado, rugem os insultos. Xingam-no até de Caburu, Muquirana e Zé Abóbora. Quando o esquife vai passando em frente ao Palácio, lá está o Antônio Carlos, no saguão, todo compuncto e de chapéu na mão, em atitude de respeito ao ato religioso. Aí, um estudante mais audacioso faz um discurso. Verbera-lhe o suposto erro e lhe passa uma sarabanda tremenda. Antônio Carlos, pede a palavra.
“Meus caros estudantes! Eu também quero associar-me ao enterro do ilustre morto. Morto feliz, que em vida jamais sonhou a grande honra de ser levado ao túmulo pelos estudantes de Minas, verde esperança da pátria brasileira. Ele terá cometido seus erros, é certo, erros de inteligência. Não de coração, porque sempre adorou o Brasil. E o Brasil sois vós, meus caros amigos! Vós, que, com vossas idéias generosas e vosso descortino maior, sabereis dar-lhe o brilho que nós velhos não soubemos dar...” Aí é interrompido por vivas e um estrugir de palmas como só os moços sabem fazer brotar. Um outro orador toma a palavra, incensa o velho Andrada, chama-lhe José Bonifácio o Moço, redivivo, e tudo termina em festa e bom humor.
“Meus caros estudantes! Eu também quero associar-me ao enterro do ilustre morto. Morto feliz, que em vida jamais sonhou a grande honra de ser levado ao túmulo pelos estudantes de Minas, verde esperança da pátria brasileira. Ele terá cometido seus erros, é certo, erros de inteligência. Não de coração, porque sempre adorou o Brasil. E o Brasil sois vós, meus caros amigos! Vós, que, com vossas idéias generosas e vosso descortino maior, sabereis dar-lhe o brilho que nós velhos não soubemos dar...” Aí é interrompido por vivas e um estrugir de palmas como só os moços sabem fazer brotar. Um outro orador toma a palavra, incensa o velho Andrada, chama-lhe José Bonifácio o Moço, redivivo, e tudo termina em festa e bom humor.
Y Juca Pirama ou de uma ode clássica, pegava a primeira como um Dodge autêntico. Enquanto os médios jogavam futebol, estava ele absorto, a um canto, a bater com uma varinha de bambu no chão e a declamar:
- Maecenas, atavis edite regibus.
O et praesidium et dulce decus meum, etc.
Mas o Delille dizia isso escandindo os pés. A poesia assim recitada com versos medidos, pega fogo e voa como pedrinha açoitada rente às águas de um tanque.
“Vires acquirit eundo”. Ora bem. Estava o Delille nesse desespero de corrida métrica, quando foi subindo o enterro do Pe. Leite, à meia encosta dos dois campos de futebol, rumo a uma árvore amiga, onde a máquina de cortar cabelo funcionava no número um.
Era o ataúde um amarrado de galhos secos sobre duas andas em cujas quatro extremidades pegavam os maiorais da turma. Lateralmente aos carregadores, marchavam os soldados romanos batendo soturnamente o solo com os cantos das lanças de pau. Era como uma procissão de enterro. Tudo lúgubre e silencioso.
O Pe. Leite rezava o Breviário para lá e para cá, aparentemente alheio a tudo. Quando o Delille, suspendendo os olhos, deu pela solenidade, ocorreu-lhe uma idéia singular. Esqueceu-lhe Horácio e lembrou-lhe Anacreonte. Correu encosta acima e subiu a um velho cupim que semelhava um mamilo enorme. Ao aproximar-se o féretro, estendeu o braço, numa saudação de galinha verde: ''parai senhores! Quero dizer uma saudação ao morto. Ele era poliglota e amava as belas letras.'' “Talis vita finis vitae”. E começou:
“ Thèlou léghin Atrídas,
thèlou de kádmon àdin:
hè bàrbitos dè chordès
Érouta münon echí
Émipsa tà neura prouen
Kè ten lyren hàpassam:
Hè bàrbitos dè chordès
Érouta münon echí.
Chèroite loipõn, heroues,
Hè lyre gàr
Érouta münon echí”.
Perdõem-me os helenistas a translação, pois reproduzir de cor e botar grego jônico em caracteres fenícios, com fidelidade, somente para Ramiz Galvão.
Eis a tradução:
“Quero celebrar os Atridas,
Quero cantar a Cadmo:
Mas a lira, em suas cordas,
Somente canta o amor.
Mudei recentemente as cordas da lira e a lira toda;
Mas a lira em suas cordas somente canta o amor.
Então, passai bem, ó heróis,
porque a lira somente canta o amor”.
O Delille, ao terminar, tomou um choque: O Pe. Leite, que tinha estado boquiabero, olhos em êxtase, inteiramente transfigurado, a ouvi-lo ao pé do cupim, puxou-o pelo braço, resolutamente; “ O senhor vai, hoje mesmo copiar isso para mim. Que coisa linda! Nunca pensei que os senhores soubessem tanto grego assim!
Depois disso, diante disso... foram saindo murchos os gatos pingados, os soldados romanos e os carregadores. O Pe. Leite, arrebatado com Anacreonte, não tinha sobra de sensibilidade para gastar com o próprio enterro.
cachoeira no Caraça |
Nenhum comentário:
Postar um comentário