J.UM
Artur da Silva Bernardes Presidente de MG 1918-1922 Presidente do Brasil 1922-1926 |
Estávamos em plena Semana Santa. O procurador tinha recebido um telefonema da chácara, pedindo que se mandasse condução a São Bento para buscar uma turma de engenheiros americanos que pretendiam visitar o Caraça. Estávamos na aula da tarde. Aula de álgebra, aliás, na sala do terceiro ano, o ano-peneira do Caraça. Certa hora, no mais embrulhado de uma equação, com o quadro todo cheio de garatujas matemáticas, ouviu-se forte barulho no corredor, do lado da portaria. O barulho continuou. Padre Bernardo disse: “Nêgo Henrique, enfie o nariz na porta e vê o que que há!” Nêgo Henrique era o professor-doutor José Lourenço de Oliveira, notabilidade intelectual da capital mineira, hoje em dia. Nego Henrique abriu a porta. Enfiou a cara no corredor. Fechou a porta. E disse com cara espantada: “Seu Padre, parece que são uns visitantes importantes.”
Padre Leite já se estava todo desfazendo em atenções com o menos importante da turma, que era um soldado da velha Força Policial Mineira, bagageiro do Coronel Campos Cristo, e este, Chefe da Casa Militar do Presidente de Minas, Dr. Artur da Silva Bernardes. Era a visita do antigo caracense Bernardes, acompanhado de outros caracenses também antigos: Clodomiro de Oliveira e Arduíno Bolivar. Bernardes, batido das atribulações de Chefe de Estado, escolhera a Semana Santa para tomar um descanso na velha alma – mater mineira. Esclarecido o incidente, Padre Bernardo nos disse: “Vocês podem sair.” Ele saiu à nossa frente e nós embicamos pelo corredor, rumo ao salão de estudo, olhando para trás a ver o grupo formado pelo Superior e pelos professores escoltando os ilustres visitantes.
Arduíno Bolívar - um dos visitantes Um dos fundadores da FALE da UFMG |
Clodomiro Oliveira 1868 - 1935 Um dos visitantes |
Tivemos sueto o resto da semana. Graças a Deus. O Caraça viveu dias memoráveis com aqueles visitantes percorrendo tudo, as salas de aula, o salão de estudo, o teatro, o Gabinete de História Natural, os dormitórios, a Biblioteca e as inúmeras instalações do Caraça, a matarem saudades, a examinarem, nos velhos bancos de estudo, as inscrições e nomes gravados em remotas épocas. Lembro-me de ver Arduíno Bolivar e Clodomiro de Oliveira procurando inscrições deixadas nos lanços da escadaria da Igreja. Bernardes, mais austero do que em seus últimos tempos, mal mal sorria às gracinhas que faziam às vezes os padres para aliviar o ambiente de certa tensão com visitas que, embora caracenses, estavam mais alto na escadaria da vida. De noite assistiam todos às imponentes cerimônias da Semana Santa, que se desenrolavam a primor na Igreja Gótica, com o cantochão impecável, a polifônica bem executada e as cerimônias da Igreja desempenhadas a tinir. Belos tempos em que se dizia tudo bem. Em que se morria por uma pequena nota de perfeição e em que, nos colégios católicos, era a liturgia executada com o rigor dos manuais dos especialistas na matéria. Já era um espetáculo ver-se o cerimoniário se dirigir aos sacerdotes que ladeavam os alunos nos genuflexórios das alas. O cerimoniário fazia uma inclinação de estilo. O sacerdote lha correspondia. Levantava-se e com passos imponentes se dirigia para o meio da ábside e começava, com voz bem modelada: “Incipit lamentatio Jeremiae Prophetae.” Era o Padre Moreira, tenor incomparável, igual ao qual jamais vi em óperas, em rádio ou televisão, que batia alto o grande Caubi Peixoto, com timbre de voz mais bonito que o de Caruso e que dele só não tinha a altura, pois não atingia dó agudo, mas que dava bem si bemol. Era o Padre Penido, meu velho professor de Latim, especialista
O Padre Rubim que uma inglesa, mulher de um engenheiro, proclamava o homem mais bonito que jamais vira com grande enleio do prudente sacerdote. Enfim, eram as cerimônias da Semana Santa com o Padre Bernardo ao harmônio e na regência do coro. O Padre Bernardo, o homem mais bravo que já pisou a terra caracense, que nos infernou a infância e a adolescência nas aulas de matemática, mas que honra lhe seja, fazia tudo na maior perfeição.
Foram dias de festa para o Caraça, com o refeitório gordo e “Deo gratias” todos os dias. Bernardes infelizmente não pôde tomar o descanso completo que queria, pois de Santa Bárbara e Catas Altas acorreram comissões políticas para o chatearem algumas horas. Bernardes, com toda a discrição que se lhe conhecia, não deixou de se queixar. Tinha ido ao Caraça para descansar, matar saudades e reviver os dias de outrora, não para ser amolado com assuntos políticos. Lembro-me edificado da piedade com que o Coronel Campos Cristo se apresentou à mesa da comunhão.
Chegou o dia da despedida. Por uma grande exceção, fomos todos à portaria assistir a saída da comitiva. Despedida de estilo, com gentilezas do Superior e dos padres, com os agradecimentos dos visitantes. Como nota quixotesca vale assinalar a despedida do soldado. Um caboclo grande, de seus quarenta anos, de cara safada. O cara lampeiro virava-se na sela, fazia despedidas sentidas: “Ô saudade do Caraça, meu Deus! Ô vinho, ô pão, ô bife que nunca me esquecerei. O Padre Superior, tão bonzinho, o Irmão Salustiano, o Irmão Chico, o Irmão Futrica, os alunos tão bonitinhos e tão alegres, a cama gostosa, mas, sobretudo, o vinho do Caraça, néctar do céu, de que minha guela guardará eterna lembrança! Adeus Caraça, adeus povo bom, adeus alegria da minha vida.” Todo mundo achou graça. Até o austero Padre Bernardo, inimigo de comédias, não pôde deixar de sorrir. Esta foi a visita de Bernardes em 1920 ao velho Caraça. Como nota dolente levaram o mapa mais antigo de Minas que só existia na velha Biblioteca de lá. De empréstimo, mas se esqueceram de o retornar. Aquele velho mapa devia valer tanto quanto a ceia de Ataíde. Seu preço daria, certamente, para reconstruir as duas alas queimadas do Caraça. Como caracense ferrenho tudo o que respeita ao Caraça me ficou na memória e me dói até hoje. Fique explicado que o quiproquó todo da chegada se deveu ao fato de que Bernardes quis chegar inesperado ao Caraça. Por isso pediu condução como se fosse para engenheiros americanos.
objetos antigos no museu do Caraça |
Camas onde dormiram D. Pedro II e a imperatriz Dª Teresa Cristina, no Caraça. |
objetos antigos no museu do Caraça |
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