quarta-feira, 30 de março de 2011

Do São Bento ao Caraça: "Vou Comer Cará" - 24/12/67 - "A Peneira" Nº 04 - J.UM

DO SÃO BENTO AO CARAÇA: "VOU COMER CARÁ"

J.UM

Colégio do Caraça com a igreja Nossa Senhora Mãe dos Homens
            Para onde é que você vai, menino?
Vou para o Caraça comer cará. Brincadeira trocadilhesca de menino da roça, que pensa estar fazendo muita vantagem. Vai ser bobo, trem!
            Era a imagem do Caraça, velho educandário, severo, com uma tarimba, àquele tempo, de quase cem anos, de serviços a Minas e ao Brasil. Caraça de Afonso Pena, do ministro João Ribeiro, Artur Bernardes, Raul Soares, Melo Viana, Olegário Maciel e de tantos outros que deixaram ao Brasil ricas lições de honradez. Vamos devagar.
            Você vai para o Caraça? Então se prepare para enfrentar seis anos de preparatórios, com raros “suetos” (feriados), férias passadas no próprio colégio.
            Concluído o terceiro ano, o ano peneira (desculpe, Peneira, foi sem querer!), você, se não tomar bomba, poderá ir passar em casa três semanas, três semanas só, após uma viagenzinha de cinco dias a cavalo, viajando na média, oito léguas diárias.
            Você vai para o Caraça? Então não será já o galinho do São Bento, sempre respeitado e adorado pelos companheiros, os seus malungos da roça, que você, aliás, sempre adorou.
            Você vai para o Caraça? Então adeus primeiro lugar na Escola, porque você vai topar com os nortistas educados pelos “fetedês”, inteligentes pra peste. Você não fará ruim figura, é certo, mas, primeiríssimo, nada! Além disso, lá vão com você dois meninos cobras – o Zé Júlio e Zé Lourenço – sempre à sua frente alguns passos. Você será bom em todas as matérias, mas, do segundo ano para a frente, você vai ver, com o Padre Bernardo, que falta no seu cérebro, um quartinho estanque, uma gavetinha, a das santas matemáticas. Em matemática, todas as picadas que você abrir, se sujarão, de novo, e você terá de abri-las, cada vez que delas precisar. Você vai ver Zezé do Juca Campos: com notas sempre boas, você terá, cada fim do primeiro e segundo semestres, quatro em matemática, sempre quatro, constante e matematicamente quatro. E foi para isso que homem nasceu, meu Deus! Para tirar quatro em matemática! Que complexo para a vida! Com que temor reverencioso e sagrado você olhará os semi deuses que são os matemáticos, os quais, ao fitá-lo, parecem dizer-lhe: “odi profanum vulgus et arceo”!

 Prof. José Lourenço - Caracence  e colega de José Rabello Campos




Do São Bento ao Caraça: Sete Dias - 07/01/1968 - "A Peneira" Nº 06 - J.UM

DO SÃO BENTO AO CARAÇA: SETE DIAS

 J.UM


Dia 14 de Agosto de 1916, de manhãzinha, parti do São Bento em companhia de meu mano, Chiquinho Campos. Perdõem ter que falar sempre de mim, porquanto estou falando sobre o Caraça, e como falar do Caraça sem falar da gente que dele se embebeu e dele se informou?

Parti do São Bento. Mamãe chorava, desde a véspera, e, ainda cedinho, ajoelhada junto das canastras,suspirava e chorava, com recato, colocando tudo quanto há de que poderíamos necessitar na longa viagem: carretel de linha, agulha, sabonete, roupa de cama, pente, escova, tudo, tudo. Mulher da escritura. E, hoje, “mulierem fortem quis inveniet?”

 Julguei que meu pai não chorou, ao abençoar-me. Pobre psicologia de criança, tão aguda em certos aspectos e tão ingênua em outros. Homem patrocinense daqueles tempos chorava para dentro. Os monossílabos estrangulados eram, Deus sabe, um choro estentórico da alma varonil e extremosa de papai. 


A última pessoa do São Bento que vi na estrada, foi o Quinco Maciel. Adeus, Quinco! Sem nem lhe dar a mão. Mineirinho que chorava como um chafariz, e tinha vergonha de mostrar-se saudoso e afetuoso, estreitando o Quinco num abraço franco. Oh! Quinco, se você soubesse as vezes em que o orgulho, a autocrítica me impedirão de, abraçando as oportunidades, viver plenamente a vida e gozar de pequenos triunfos, usando os recursos minguados que Deus me deu! Mas a vida é assim mesmo. E a humanidade é, regra geral, egoísta. Há pessoas amigas que querem projetar-nos. Cansam-se, entretanto, ao esbarrarem, de seca e verde, com a estrutura da gente. Quem rompe estrutura de aço? Quem levanta, no engenho, um boi teimoso como os do Piauí? Fica pra lá, trem. Na grande tela da vida pincelada por Deus, estão previstos todos os efeitos. Tem que haver sombra e tem que haver luz. Sombra? Há os indivíduos-sombra para que se destaquem os pontos luminosos. Estava tudo previsto: os gênios, os talentos, os meia-tigela besuntados do carisma da imodéstia e do avança, do pega o queijo no ar. Sim, o “avanço” é carisma. O medalhão é carisma. Quanto carisma, meu Santo Deus! Quanto mini-saia na política e nos postos-chave! Mini-saias? Pra quem é, serve.


Do São Bento ao Caraça : João Farias - 21/01/1968 - "A Peneira" nº 08 - J.UM

DO SÃO BENTO AO CARAÇA: JOÃO FARIAS 

 J.UM
 

Virginópolis antiga - MG
            Ora, bem! no arraial, agregamo-nos à caravana que seguia para o Caraça. Éramos: o Luís Amaral, que retornava para o quarto ano, e a turma dos novatos: Tonico e o seu Quim Bento, Zé Júlio, Zé Lourenço, Elifas, Zé e este criado de vocês, o mais matuto de todos. Íamos de calça comprida, chapéu de lebre de boa aba, ceroula chegando até o tornozelo: no Caraça era assim. Mais despedidas, sendo somente eu o chorão, ao despedir-me da Nica adorada, de Vovó Augusta, Tio Antônio e Raimunda. De véspera, mandara-me papai ao Seu Guedes para um check-up. Seu Guedes recomendava-me não comer dos cocos do Caraça, por fazerem béri-béri. Estava na sala o João Farias e estranhou me mandassem tão novo para o colégio. O Guedes, coçando a orelha, naquele seu jeito característico, acudiu: “Não faz mal, João, é assim mesmo que é bom. O estudo entra bem é na cabeça de menino”. Velho e bom Seu Guedes, caracence da gema, pai dos ricos e dos pobres, já apresentaste os comprovantes a São Pedro? 


Virginópolis antiga - MG
          Adeus, Patrocínio de Guanhães! Seu João Coelho, coitado, que sempre aplaudiu a instrução, fez-nos o bota-fora até o fim da rua da Várzea. Chamava tudo de “coisa”, por ser mais simples, talvez. “Adeus, coisa! Dá lembrança aos coisas!” “A benção, seu Joãozinho!” Seu Quim Bento, irmão do Seu Joãozinho, era o chefe da caravana, pois o Tonico lhe era filho: Já velho e pachorrento, fez-nos gastar sete dias na viagem de mais ou menos trinta e nove léguas.          
 





1º Grupo Escolar Nossa Senhora do Patrocínio em VIrginópolis

              Eta mundão de meu Deus: Penhora, Serra da Gaforina foram acidentes geográficos notáveis que desconhecíamos. Tínhamos tomado bom café na casa do Levi Pereira, e a prosa se foi animando. O Tonico era o mais entusiasmado para ser padre e sacudia os pés no estribo, o tempo todo. O Zé Lourenço, montado na bestinha do Sabino, era, vez ou outra, por ela levado até o meio dos assapeixes que a diabinha da besta empacava mais que carneiro pirracento. Arranchamo-nos no João Farias. O termo é, mesmo, “arranchar”. No rancho de tropa, ao lado do curral batia-se a trempe. Feijão no caldeirão, arroz na panela de alça, e, em primeiro lugar, fumegava o meu grande amigo, o café. Depois, à noite, prosa até a chegada do João Pestana. A gente rezando baixinho: Anjo de Deus, que sois a minha guarda. Dormir.
           
vasilhame de rancho de tropeiro

Do São Bento ao Caraça: A Porca - 28/01/1968 - "A Peneira" nº 08 - J.UM

DO SÃO BENTO AO CARAÇA: A PORCA


J.UM                                           

  Ao meio da noite quando já começava a segunda etapa de sonhos, um barulho. Acordo, por último, como até hoje, e vislumbro um luzir de dois tições manejados pelos camaradas, Barnabé e João Avelino. Um grito estridente e grunhido. Era uma porca, dessas que têm o rubro amor da bóia, que se safava, esbordoada, mas preso à tromba meio quilo de bom toucinho roubado à capoeira, onde  guardavam o produto.


O Elifas, meio aprumado no colchão, por cima do couro de boi, olhava com aquele olhar espantado, expressão máxima de sua emoção, antes de falar qualquer coisa  gaguejada. Risada gostosa do Tonico. Gargalhada franca do Zé Júlio, quando o ridículo de uma situação lhe agulheta o cérebro.

Ah! Sim. Virar para o canto, dormir de novo, antes que os outros durmam tudo, fixando a lição de moral que me deixara a porca do João Farias: personalidade, persistência, agarrar o toucinho e não o largar, haja o que houver, paulada ou não paulada.

Na antemanhã, quando os galos da fazenda davam as últimas corridas de saxofone para a entrada da aurora no palco do dia, já soava no curral o toque do cincerro do burro da cozinha. Bufado soprado dos animais, virando o bornal para o alto, numa cadência ritmada para que os bagos de milho lhes descessem às bocas aradas. A melodia sugestiva do moca a cair na palangana, o cheiro bem vindo do feijão na gordura legítima, para o almoço antes da partida. Todo mundo de pé se estremunhando rumo às bicas, para tirar a ramela dos olhos, o sebo da orelha e o visgo dos dentes.


Arrear  os animais. Os cavalos e burros, tendo achado bom pasto, tinham as barrigas abauladas, ar alegre de quem está bem disposto para mais sete léguas. Vamo-nos embora. Gema de terra do nordeste, com tuas árvores frondosas, teu capim meloso, teus adragos, assapeixes, jacaré, lagartixa, embaúba – cabeleira de corpo fértil – ir-te-ás mudando, perdendo a tua força até a natureza do Caraça, com pequenas árvores de terra seca, pedregosa e areenta. Tu não tens o perfil olímpico das montanhas azuladas, cheias de titãs de pedra. Tu és feia para quem em ti não nasceu. Mas hás de ficar no nosso sangue, a vida inteira, e serás sempre para nós a mãe risonha e bonita de seios fartos e de leite gostoso.

Vamo-nos para frente, minha gente. Pra frente rumo a Ferros. Vamos ter a primeira grande emoção da vida.
                                                                            
Ferros antiga










terça-feira, 29 de março de 2011

Do São Bento ao Caraça: Aurora - 04/02/1968 - "A Peneira" Nº 10 - J.UM

DO SÃO BENTO AO CARAÇA: AURORA


J.UM

Ferros antiga - MG

           Para um menino da roça, foi um acontecimento a entrada em Ferros. A primeira cidade que eu conheci. Meia légua antes de qualquer cidade, há os vestígios da aproximação de um aglomerado humano. Um quê de indefinível na paisagem, maior extensão de pastos cuidados, mais gente pelos caminhos. Estamos andando, andando, deixando para trás uma ou outra tropa. Dizem que no triângulo há um monumento ao zebu. No Nordeste falta uma estátua ao burro. Não como símbolo intelectual para a região, é claro, robusto, paciente, pertinaz e... inteligente. Inteligente, sim. Talvez assistisse razão ao carroceiro lusitano, que com sua musculatura de respeito ajudou o burro arquejante a arrancar do atoleiro a carroça pesada, e, então, tirando o chapéu e batendo na testa, apostrofou o valente asinino: ‘olha, colega, tu podes ter mais inteligência que eu, mas, muque, lá isso é que não!’ Bom povo português, que adoramos, perdoa-nos a irreverência, que é, muita vez, a paradoxal expressão de amor.

            Foi o burro que construiu o nordeste, transportando-lhe os produtos, e carreando, de Ouro Preto, Caeté, Diamantina, Sabará, Santa Bárbara, e até do Rio, os panos, as sedas, as rendas, o sal, o trigo, as ferragens, a louça e vasilha, até os santos para as igrejas e as lajes para as sepulturas.

            Penetramos gloriosamente em Ferros. Mateirinhos consertando o corpo, dando um jeito ao lebre e aprumando-se nos estribos, como se fôssemos alguma coisa. Catrau, catrau, catrau, três, três, três. Chispa a esguichar do pé-de-moleque ao raspar das ferraduras. Alguma moça desocupada acudindo displicentemente à janela. E nós, o centro do mundo. "Curuz"!

            Em um chafariz, a estátua de Aurora e de sua companheira, cujo nome não há santo que me faça lembrar: as duas primeiras índias que se batizaram no Brasil. Parece uma coisa à toa, mas, que impacto, gostoso no pensamento e no senso estético da criança que vê objetivado o que aprendera no livro.

ponte na cidade de Ferros - MG
            Ferros foi-se batendo para a retaguarda. Oh! coração que jamais te enches, já estás a ansiar por conhecer Itabira do Mato Dentro, a fábrica da pedreira, São Gonçalo do Rio Abaixo e Santa Bárbara. Quem de criança, após verificar que o céu não topa com a terra no cabeço daquela serra, não desejou um poder de visão que ultrapasse as lindes do horizonte e alcance o mundo formigante, cidades, regiões palpitantes de vida e de intercurso humano? No entanto, quantos conhecem menos do que a gente, quando afinal, têm o mesmo direito ao exercício de suas faculdades e a um campo maior para seus esforços. Labutam no campo ou na cozinha, a vida inteira, produzindo, sacrificando-se, mas numa estagnação e sujeição contrária à própria índole. No geral, entretanto, pensamos que eles que tiveram maiores oportunidades do que nós. Lembra aquele menino. A casa era um colégio de quatorze filhos. Os quartos, dormitórios. Tempo de frio. A mãe corria os dormitórios antes de se deitar, zelando pelo agasalho dos meninos. Cobre um aqui, achega o cobertor ao pescoço de outro, acolá. Passando junto do mais velho, pede este mais uma coberta.

            -Ah! meu filho, não há mais cobertas. Pense nos pobrezinhos que não têm nem as cobertas que nós temos.

            -Não, mamãe, eu fico pensando é nos filhos dos ricaços que, à uma hora destas, estão atochados debaixo de cada cobertor de meio palmo de grossura.

vista do Caraça a partir do cruzeiro

















segunda-feira, 28 de março de 2011

Do São Bento ao Caraça: Santa Bárbara - 03/03/1968 - "A Peneira" N°14 - J.UM 

DO SÃO BENTO AO CARAÇA:  SANTA BÁRBARA 

J.UM
                   


Itabira antiga - MG

 De Ferros a Itabira são boas onze léguas. Itabira ainda não tinha sido honrada com o conto bestial de Viriato Correia. Por Itabira passamos. Casarões antigos.Gente de casimira pelas ruas, em pleno dia de semana. Os ferreiros fazedores de martelos e puxavantes bem torneados. O Cauê.

Seguimos pelas estradas de campo. Sempre penetrei com gosto pelo arraial da natureza. Longe da observação dos outros, sentimo-nos mais senhores de nós mesmos. Nossa individualidade reponta. Há menos inquietação e mais dignidade. A vida social, mal necessário, gregariza o homem e o estandartiza, põe-lhe recalques e servilismo.

Vejam, mesmo nas revistas, a serena dignidade dos selvagens. Não é orgulho que lhe ressumbra das feições e do olhar. É a autoconfiança, é ausência de medo. A natureza acalma e dignifica. Ainda há pouco, me contava um amigo, de dois índios que viu em Cuiabá. Percorriam as ruas, eretos e majestosos, alheios à observação dos transeuntes ou dos grupos. Eram dois soberbos espécimes de selvagens. Ficou meu amigo tão embevecido que, quando se lembrou de que trazia a tiracolo a Kodak, já era tarde. O selvagem, em certo ponto leva vida social mais completa, pois sua condição é tribal. O contato perene com a natureza corrige, contudo, os corolários inferiorizantes da vida em sociedade e mantém genuíno e sereno o selvagem.


Ao passo compassado dos animais, varando planícies e vales, furando capões de mato e capoeiras grossas, transpondo ribeirões borbulhantes escutando, a espaços, a melodia sonora e concertada da passarada, bebendo café novinho de algum tropeiro patrício, dormindo nos ranchos que pontuavam a longa estrada, ao crepitar do lume que cozinhava o feijão, quase à luz das estrelas de agosto, foi-se cumprindo nossa derrota até Santa Bárbara do Coronel Juventino Dias, de Duarte de Oliveira e do Padre Brocojó. Santa Bárbara, a meca do café nordestino, do nosso toucinho, do fumo afamado de Patrocínio de Guanhães. Santa Bárbara onde o Joaquim “Cem Quilo”, o Jaleco, o Niquinho, o Benjamin Felipe, o Tomé, o Zé Faustino, o João Paranhos, o Salate, o Samambaia, Zé Camarada e tantos outros tocadores de burro passearam a sua força, as piadas ou as suas potocas.                                                                                                                                                          
 
Santa Bárbara antiga - MG


                                                                                                                                          
                    


Do São Bento ao Caraça: A Luz Elétrica - 31/03/1968 - "A Peneira" N° 18 J.UM

DO SÃO BENTO AO CARAÇA: A LUZ ELÉTRICA


 J.UM

Em Santa Bárbara travamos conhecimento com a luz elétrica. Quando a cidade se iluminou, creio que foi nossa sensação igual à que experimentarei a bordo de um disco-voador sobrevoando a lua. Entre parênteses: há os que zombam da crença em discos-voadores. São os inteligentes demais da conta. Os para quem mostrar no firmamento Marte, Vênus, Mercúrio etc, é café pequeno. Os que andam com a cabeça doendo de tanto pensar. Os que estão completamente a par do pensamento e ambiência da era de Fernão de Magalhães, Galileu, Edson e tutti quanti. Os que sabem, de cor e salteado, os rudimentos da astronomia: que somente em nossa galáxia, há, talvez, mais de cem milhões de estrelas, cada uma um sistema solar. Que nossa galáxia tem de comprimento, 100 mil anos-luz, andando a luz à razão desprezível de 300 mil quilômetros por segundo. Que a luz da Polaris, ou estrela Polar, hoje avistada pelos europeus, zarpou de lá há 300 anos. Que a luz provinda da galáxia de Andrômeda, de lá partiu, há 700 mil anos.

Mas deixemos de esnobar, - como o Dr. Amilar é nocivo! – e digamos, simplesmente, que o mineiro, quando se admira tem razão, e que, apesar de jeca, brilha, em geral, nos estudos. Quantas piadas fizemos, ao acender-se a lâmpadazinha  pelada no rancho da tropa. Somente em Virginópolis se deu coisa menos pitoresca, oito anos mais tarde. Tinha sido nomeado zelador o Benedito Viana, baixo, balofamente gordo. Era o dia da chegada da luz. Estava ele junto ao poste, no alto de uma escada de mão, seguro pelo Joaquim Nunes. O Joaquim Nunes era um gigante de, seguramente, 1,90m, muito bom, mas por demais simples. Ora, pois, estava no alto o Benedito Viana a torcer a lâmpada e o Joaquim Nunes, em baixo, a firmar a escada. O Benedito, que nunca foi seguro de seus botões, deixou escapar um silencioso borborigmo, no momento exato em que chegava a luz.
Diz o Benedito: Custou mas chegou.
E o Joaquim Nunes, sinceramente convicto: - Chegou até com uma catinguinha!
Como o Hely Rodrigues sabia contar isso! Não é de admirar que a luz de Virginópolis tenha sido, tanto tempo, excessivamente pudica e recatada.

                                                                                                                                         
Virginópolis
                                                                 
                                                                                      
                                                                                


Do São Bento ao Caraça: A Serra - 14/04/1968 - "A Peneira" N° 20 - J.UM

DO SÃO BENTO AO CARAÇA:  A SERRA


J.UM

Serra do Caraça


De Santa Bárbara, a cidade que possuía uma custódia de 14 quilos de ouro maciço, partimos, após a missa, para o Caraça. Vinte de Agosto de 1916 foi um domingo. Viagem que não acaba, hein, minha gente? Mas olhem que são quase 40 léguas que estamos fazendo a cavalo, com as inevitáveis prosas pelo caminho e com o bom café dos ranchos de beira estrada.

Daí a pouco, começou a natureza a ralear ainda mais, à aproximação do Brumado e do famoso Arranca-Toco. Céus e montanhas muito azuis. A Serra do Caraça assomou ao longo com seus contrafortes e seus bastiões externos de base formidáveis, como as muralhas de Jerusalém do lado do Cedron. Desafiando o acesso, muros colossais esmorecendo a invasão e a escalada. O Caraça visto do lado do mundo, traz infalivelmente à lembrança o cenário da Hélade. É uma Grécia, uma colméia católica, uma Tebaida onde se podem reviver as façanhas espirituais dos eremitas do Egito. Fumaças em colunas ao longe indicavam a queima dos pastos pelo irmão João Mertens.

Colégio e Serra do Caraça ao fundo
No Brumado, uma parada em casa da família Paiva, com dois filhos no Caraça, o Modesto, ornamento do clero marianense, e o Joaquim de Paiva, que, morando mais perto, nos havia precedido. A família Paiva foi sempre excelente e morando quase na roça, que tal era Brumado, tinha modos finos e ideal elevado. O Modesto deixou voga no Caraça pela inteligência, procedimento, bondade e força física. Era o Modestão. O maior pistonista do meu tempo e enfermeiro de truz. Dessa gente boa que encontramos na vida e que só nos deixa saudade. Diz o Dr. Amilar que eu tenho o mau vezo de elogiar. Sim, a quem merece, porque estou cansado de ver tanta gente ruim, gente que não presta nem para se jogar fora, de gente que não vale duas pipocas e vive a se impor de grande. Destes, Deus me guarde, como diria o Gregório de Matos.

Começamos a subida. A chácara de Santa Rita, sala de visitas do Caraça antigo, esgueirou-se à esquerda, como uma carneirinha branca aninhada na serra. Com pouco, avistamos Cascata Grande grito de alerta das castas águas caracenses, antes de avançarem pelas águas turvas do mundo rumo ao Rio Doce.

Cascata Grande - Caraça
Estrada íngreme, áspera, na garupa viva da rocha. Milagre de construção do Irmão Freitas com seus negros escravos. Trabalho de gigantes. Paredões de blocos enormes trazidos do fundo do abismo espumejante para fazerem rebordo na anca vertical e lisa da serrania, onde antes somente grimpavam lagartixas. Lá para trás, o mundão de meu Deus, o pico de Itabira, de atalaia, espichando o pescoço curioso, olhos de esfinge que já tinham seguido o tropel dos bandeirantes. Da borda dos paredões, caía a vista nas grimpas dos adragos altíssimos e de outros gigantes da flora da beira d’água. Coitado de quem cair daquelas alturas, a não ser que grite “Nossa Senhora do Caraça”.

Lobo-guará em terras do Caraça

domingo, 27 de março de 2011

Do São Bento ao Caraça: Padre Cruz - 28/04/1968 - "A Peneira" nº 22 - J.UM


DO SÃO BENTO AO CARAÇA: PADRE CRUZ  

 J.UM 



Morreu o grande mestre. Como a cadeira de Rui, ficará vazia a sua cátedra. Porque ela tinha as dimensões dos assentos de pedra postados em círculo nos píncaros andinos, onde os problemas políticos dos pré-colombianos se debatiam pelos grandes chefes, os titãs de outrora. O jequitibá do topo da serra topando com o céu caiu glorioso.
Não norteará, de vivo, o jornadear dos peregrinos do idioma, com o saber brotado do cerne do instinto vivo da língua, aprimorado através do estudo diuturno e da incessante devoção.

Caiu o gigante da selva “selvaggia” do gigantesco idioma lusitano. Caiu. E o sulco deixado no seio desta selva é como o estirão tenebroso junto ao Cruzeiro, por onde se sumiu Adão primitivo, gerador de tanto sabedor obscuro, de tanto escritor ilustre, de tantos mestres nas cátedras do ensino secundário e superior. Morreu Padre Cruz. Num nome pequeno, encerrado um mundo. Um mundo de lutas e ideal. Anos e anos, a formar a mente do mineiro e do brasileiro, dos seus alunos, dos privilegiados, por ele guiados nos estudos da língua portuguesa. Estudo em profundidade. “Non multa, sed multum”. Ciência do domínio do alicerce. Arte concretizada na poliforme redação, limpa, deseivada do fraseado sem conteúdo e do verbalismo vazio. Da linguagem campanuda e do adjetivo sobrecarga.

Mestre da pureza da linguagem, do equilíbrio e bom senso. Da castidade vernácula e de respeito à estrutura cerrada da língua portuguesa. Da veneração pelos clássicos, mas com espírito aberto às inovações proveitosas que, ensartando-se na corrente da língua, lhe carreassem possibilidades novas de expressão e de estilo. Tradicional, sem casmurrismos. Evolutivista e censor severo das aberrações e dos atentados ao bom senso e à justa medida.

Como era de te ver, ó Mestre, o primeiro a penetrar na sala de aula. Como era de te ver, a abrir, cada dia, como bom capineiro no ervaçal dos roçados, novos eitos de limpeza no joeiral da nossa ignorância. Como era de te ver ensanchando vocações para as letras e dilatando horizontes aos buscadores do manancial literário.

Santuário da Senhora Mãe dos Homens
 - 1ª igreja neo-gótica do Brasil
vitrais franceses - o central
foi doado por D. Pedro II  na sua visita ao Colégio














         Eras o grande lidador. No Caraça, Santuário da     Senhora     Mãe dos Homens, assentaste a tua tenda aonde acorreram, como outrora os peregrinos, as chusmas dos torturados do ideal. Como Aquiles junto aos muros de Tróia, e como Nestor, o conselheiro inefável dos gregos, plasmaste na ciência e no manejo das armas da linguagem quantas turmas de novos lidadores, que continuarão a aplaudir-te, depois de morto, como o seu formador, o seu norteador e o seu paradigma. Merecias, antes de cair siderado por tua única vencedora, o título de pai da Pátria, se for, como é verdade, no juízo perspicaz dos povos da velha América, que as Pátrias se definem nos idiomas em que se expressam.

Morreste! Mas na brisa caracense, que de mel e de aroma da língua te ensandalou o espírito, perpassará a tua presença. Lendário em vida, serás, na memória dos pósteros, enquanto houver no Brasil o apego à boa língua, a lendária imagem do beneditino do idioma e do mestre perfeito, do bandeirante de tantas turmas que contigo partiram à cata do ouro da linguagem vernácula. Como na brisa do Caraça e no cenário do apocalíptico de sua beleza, será tua presença uma constante no pensamento e na saudade dos que te devem.

interior da1ª igreja neo-gótica do Brasil

Santa Ceia do Mestre Athayde
Relíquia do Caraça

Do São Bento ao Caraça: O Funil - 05/05/1968 - " A Peneira" N° 24 - J.UM

DO SÃO BENTO AO CARAÇA: O FUNIL

J.UM



Serra do Funil - nas proximidades do Caraça
Na descida da serra para dentro da bacia caracense, vamos encontrar à nossa direita, sem o haver transposto, o ribeirão do Caraça, que antes vinha à nossa esquerda. Quando cheguei, não dei por isso. Indo buscar-me para as férias do terceiro ano, estranhou meu pai esse fato. Expliquei-lhe que passara por cima do rio. É que o ribeirão do Caraça, logo abaixo dos Taboões, mergulha na terra, como cobra de duas cabeças, ou como outro Alfeu, e rompe, cem metros à frente, para sacudir a juba prateada ao se projetar na Cascata Grande.                   

Cascata Grande - com 70m de altura - 6km do colégio
            
É o Funil. Caraça misterioso, produto das violências geológicas, inconfidente das falas do Todo Poderoso. No Caraça tudo é grande.
Esta estrada, hoje abandonada, deve ter sido a segunda que botou o Caraça em comunicação com o Nordeste. Já no tempo dos lazaristas, talvez tenha havido outra passando pelo Engenho. 

Estrada do Inficionado
 Ao tempo do Irmão Lourenço, havia a estrada do Inficionado e também a estrada da Verruguinha, por onde, ainda em nosso tempo, o Dr. Francisco Veloso, caracense antigo, médico da casa, vinha mensalmente de Ouro Preto, no seu burro pelo de rato, pachorrentamente, por aquele trilho incrível, passando pela Fazenda da Alegria já então dos ingleses: 15 léguas.

Pela estrada do Inficionado, passou o gordalhufo Dom Frei Cipriano, que a renegou, como a tudo que era do Caraça.

Se era Frei Cipriano homem de vida santa, sempre é verdade que, atrás da montanha, outras montanhas há, e São Vicente e o Irmão Lourenço eram muito maiores do que ele. Deus lho haja perdoado e lhe haja mostrado, lá do céu, os jesuítas de São Vicente formando um clero admirável em Mariana, Diamantina e na maioria das dioceses do Brasil, bispos santos e luminares intelectuais, como um Dom Silvério e um Dom Joaquim. Porque São Vicente, o grande doutor da caridade e o maior homem do século de Luís XIV, cometeu um único engano, levado por uma excessiva modéstia, ao apelidar sua congregação de Pequena Companhia. Na verdade, os lazaristas foram sucessores dos jesuítas, e, se aqueles lançaram os fundamentos da cristianização do Brasil, foram os lazaristas os maiores formadores do clero brasileiro. Dirigindo um colégio como o Caraça, “alma mater” da instrução e dos grandes políticos brasileiros, possibilitaram a eclosão dos maiores tribunos do Senado e da Câmara e de um clero que honrou Minas e o Brasil. Dando missões poderosas pelos rincões mais longínquos do território das altaneiras e de todo o Brasil, foram os segundos jesuítas que mantiveram acesa a luz da fé em nossa Pátria, para o entrechoque moderno do livre pensamento e do respeito a Deus. 

Caraça, Inficionado e morro da Verruguinha 
Foi por aquela estrada que nós, do Patrocínio de Guanhães, com a curiosidade de meninos e o medo do desconhecido, galgamos para o Caraça, naquele 20 de Agosto de 1916, um domingo, que ficou para nós um marco histórico. Era o Tonico, muito meu amigo, falecido há anos, o José Erasmo, idem, o Elifas, ex-prefeito, com  aquela cara de santarrão que conserva até hoje, o José Lourenço, luminar da erudição em Belo Horizonte, o José Júlio, inteligência peregrina e coluna lazarista, o Luís Amaral, escritor, economista de nomeada, citado em livros técnicos de agricultura e cooperativismo, que voltava para o quarto ano, e este seu criado, que vocês sempre perdõem, por tanta conversa comprida.

Alunos citados no texto e matriculados em 1916 no Caraça
Cópia do livro de matrícula do site oficial do Caraça