quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Cachoeira - 22/06/1969 - “A Peneira” Nº 78 - J.UM



CACHOEIRA


J.UM


Ao poeta Wulmar Coelho




A água eclode da mãe d’água,

em olhinhos empapuçados,

no umbral dos caetés e dos palmitos.

Desce a grota, suave

e vai cair chorando

pela pedreira abaixo.



Água que cai chorando

pela pedreira abaixo,

pela pedreira escura

da Fazenda da Cachoeira.



Pedreira escura e grave,

donde o córrego se despenha,

cantando em riacho,

num sudário de prata,

que apalpa mansamente

o busto, a cintura

e o quadril de granito.



Pedreira escondida,

retirada e feliz,

indiferente ao que passa,

pois nada há de novo abaixo do sol.



Olhando a grota,

solfejando, no eco,

a cantarada dos pássaros

à canícula

ou o sussurro de embalar das serras

dentro da névoa transparente, à noite

sob a lua crescente,

que acaricia a carne do teu corpo nu.



A pedreira sonora

recebe vozes e gritos

e, em ricochete, os devolve,

na inutilidade aparente

de tudo que é virgem,

guardando seus pensares,

em sigilo.



Pedreira. Permanência

de tudo o que é grande e triste.

Poema da solidão.

Presença do humano

no coração das coisas.

Intuição dos grandes silêncios

que falam e cantam

só para si.



A água já fez cintura

no teu talhe de mulher, 

uma faixa de negror

no teu busto discreto

de virgem esquiva.



Água que conversa

cheia de esses, 

de sussurros e cochichos,

num segredar de moças

de fazenda antiga,

na carícia da noite,

quando as amarras se soltam

e o amor ulula

na crista da evasão pagã.


Pedreira, que ouviste o estampido

dos vulcões primitivos.

Vês o sol, há que milênios,

no subúrbio da Via Láctea,

e a placidez da lua,

singela durante o dia,

vestida de vedete à noite.



Viste animais enormes,

nas eras da terra quente.

Estegosaurios e dimorfodontes,

erguendo a fronte hirsuta

da cabeça escamada,

a beber, a vinte metros de altura,

no sulco de tua cintura

de Pomona das águas.



Repetes, com a mesma calma,

aparando no peito o berbequim dos raios,

o ribombar do trovão,

a trovoada surda

dos queixadas acuados,

as clarinadas do potro amoroso,

o mugido lírico do garrote crioulo

e a tosse agarrada do zebu indiano,

a buzina do vaqueiro de chapéu de palha

e o rufar surdo de tambores em luto

dos aviões a jato

a estender, no comprimento do céu azul,

o pavio de algodão macio.



Ah! pedreira!

Amei-te cedo

e tarde te entendi. 
                      
A fita de água pura

que desce sobre ti

qual madeixa de platina,

mede a tua altura

de poetisa da solidão.



Eu pensava, de menino,

que eras a porta do inferno de Dante

e que o eco poderoso de tua garganta

eram os gritos de algum precito.

 

Hoje, tu me evocas

a Esfinge do Egito,

o olhar que sonda o futuro,

no ar de descrença

de quem já viu

crepúsculos humanos,

numa força tranquila,

no estado de graça

de quem vê no que passa

o sentido do eterno.



Ah! eu também sinto

a linfa a borbulhar no peito,

a me cantar lá dentro

coisas serenas.

Eu tenho visões internas.

Mas essa visão perene

não tem a fala companheira

a arrebentar do centro

da alma da pedreira.





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