TIO ZEZÉ
Não quero escrever sobre o Dr. Rabello. Sobre o poliglota, o tribuno, o
poeta, o homem culto escondido sob vestes simples e pobres. Tão simples e
pobres como as do mais humilde virginopolitano. “Não é a roupa que faz o
homem”, disse ele muitas vezes.
Não. Desse Dr. Rabello não quero falar. Eu tinha demasiado orgulho dele.
Minha fala seria suspeita. Eu quero falar do tio Zezé. Do tio Zezé que eu amei
e choro a perda, quase tão sentidamente como chorarei meu pai. Do tio Zezé, da
minha infância já bem longínqua. Das férias na fazenda do São Bento que ele
tanto amou.
Do tio Zezé de quando lhe revirava a biblioteca à procura de romances e
revistas. Aproveitando-lhe principalmente a ausência. Na época em que
trabalhava em Guanhães. Ainda o ouço. Dete, Dete, não mexa nos meus livros.
Aqui tem muita coisa que não pode ler. Quando quiser, peça, que eu lhe
emprestarei o que puder ler. Qual nada. Não conseguia vencer o fascínio que
aquele quarto exercia sobre mim, e continuava a revirá-lo sempre que surgia
oportunidade. Às vezes, acobertada pela "dindinha" Jovelina, que dizia “Não tem
importância, é só colocar no mesmo lugar, que ele não vai notar”.
Quero falar do tio Zezé que passava horas e horas, noite adentro,
contando fatos e estórias dos nossos antepassados. De gente que nunca vimos,
mas que aprendemos a conhecer e amar através de suas palavras.
Era um amante de antiguidades. Prestava verdadeiro culto aos
antepassados, perscrutando-lhes as vidas e os hábitos, numa curiosidade
insaciável. “Eu sou de escorpião. Jamais saciarei a sede de saber” dizia
sempre.
Ouvindo-o, pensava em Érico Veríssimo. Outro cultor do passado. Seus
livros são epopéias de gerações. Há nos dois muita semelhança e uma única
diferença. Única, mas irremovível. O autor de “O Tempo e o Vento” é um
materialista. Situa-se no tempo. Enquanto que o nosso chorado intelectual, que
grande consolação! Sempre pôs Deus à frente de tudo. Na vida e na morte. Jamais
esqueceu os ensinamentos que recebeu desses antepassados, que tão bem soube
cultuar.
Recebeu a doença tranquilamente, resignadamente, das mãos de Deus. Isto
é, no fim. No início não o sabemos, pois ninguém lhe viu a alma. Quem
pode saber as lutas feridas no íntimo, de quem teve sempre hercúlea força de
vontade. O certo, porém, é que no fim, em meio ao grande sofrimento de que foi
vítima, era a efígie perfeita da conformação com a vontade de Deus. Nenhuma
queixa. Nenhuma revolta. Sempre preocupado com os outros. Agradecendo o
pequenino favor de um copo d’água, de umas cobertas ajeitadas.
E pensar que ele pressentia o fim. Sozinho, calado, guardava este
presságio para si só. Na certa para não ferir os seus. Acompanhando o progresso
da doença, certifiquei-me dia-a-dia disso. Do contrário, como explicar seus
poemas? Por exemplo, o publicado no nº 71 de “A PENEIRA” de 12/04/69, há
exatamente três anos.
“Agora, a festa se acabou.
Desçamos a montanha da vida.
Mas, antes da descida,
quero olhar, uma vez mais,
as voltas dos caminhos bonitos
que ficaram para trás.”
Ou o final do poema:
“Adeus!
Adeus, meu companheiro!
Agora, meu sonho,
meu irmão siamês,
vamos ver a realidade
do ser ou não ser”.
O poema todo rescende a morte, despedida, pesar, como o próprio tema:
“Adeus”. Por que isso, se não pressentisse nada?
- Pois é, meu tio. Você se foi. Nós também iremos um dia. E talvez mais
cedo do que o supomos. Praza a Deus aceitemos a morte como o senhor soube
aceitá-la.E ouso repetir, o que disse a um de seus filhos, à guisa de consolo:
foi sábio e santo. Pois sabemos que para ser santo não é necessário fazer
milagres.
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